Programa 1 - Vendo Estrelas

por João Pedro Rodriguez

Ficar parado diante do céu estrelado consiste em uma das mais ancestrais visões humanas. Olhar diretamente para o mais distante inspira sonhar alto, uma plenitude que também é ao mesmo tempo suspensão vertiginosa dentro de si mesmo. Entre as tantas experiências visuais que ritualizamos, o cinema possui uma qualidade intrínseca que o diferencia e que se espelha de alguma forma nessa primeira:sua premissa de escuridão. Os três filmes que compõe a sessão, de modo geral, lidam com uma espécie similar de quietude, com um silêncio noturno que ronda o secreto e conduz ao núcleo de um sentimento intenso, onde se infiltram as imagens do passado do cinema, da memória individual, imagens vividas ou sonhadas. 

A tela pulsando em pontos brancos, como poeira estelar ou átomos em convulsão, abre o curta Blæd, de Bernardo Wendrownik. Organizam-se na constelação de um rosto, que emerge do ruído – a face remota de uma mulher, logo interrompida por outra: novamente, um closeup hollywoodiano antigo – Gloria Jean, olhando para baixo, sem movimento. Mas uma estranha moldura, típica dos créditos iniciais, está recolocada exatamente sobre seu rosto, fechando-o, ainda que ele extravase um pouco o retângulo. São pedaços do filme Copacabana, de 1947, que passam a vir e revezar, então, com uma imagem obscura e granulada. Num breu feito de formas vagas, se distingue apenas um neon escrito “rio”, e a portaria de um prédio. Um hotel, um prédio, uma entrada qualquer na Copacabana real, se fazem portal para velhas imagens norteamericanas, para Carmen Miranda. O close-up em direção às mulheres, como busca por um signo totalizante do desejo, como momento onde se cristalizou todo um imaginário e um ideal de feminilidade, oferece no curta dois olhares enigmáticos. O avesso traz um rastro vermelho como conclusão. 

Nos filmes seguintes, Looping, de Maick Hannder, e Sonhos, de Chico Lacerda, o silêncio cede à uma voz, que nos guia por um mundo pessoal, pela subjetividade de um indivíduo. Looping trata do encontro amoroso entre dois jovens, visto através de fotografias em um movimento limitado e circular, que mudam num ritmo fixo. Registram todas as feições e olhares do desconhecido por quem o narrador se apaixona, perseguem ele até o desnudamento, tentando possuir cada instante. A voz, sem corpo em cena, guia as imagens misturando-as com suas percepções de detalhes únicos, como uma confissão em um diário ou um romance. A intimidade entre homens, que precisa se fazer secreta socialmente, em Looping se deseja totalmente exposta e aberta ao mundo, tal como viu e sentiu alguém em um momento de paixão, dor e obsessão. Tudo que se restringe, e aquilo que se espera, da sexualidade masculina encontra neste relato mineiro um potente sentido de desvelamento, sobretudo do corpo em si. Mas é como se, afinal, pela restrição e pela repetição no beco sem saída da memória, o movimento não se completasse. Elementos como o parque de diversões, a fuga na estrada por hotéis baratos, parecem as marcas de uma atmosfera ficcional e idealizada da descoberta do amor jovem. 

O desejo é o motor do sonho, e o sonho, por sua vez, é como uma bússola do desejo. O fundo onírico mais explícito de Sonhos, fechando a sessão, acaba ressaltando uma verve que atravessa de certo modo os três curtas. O tom ensaístico do filme dá continuidade ao que Chico Lacerda já vinha fazendo em trabalhos como Virgindade (2015), em que sua experiência da sexualidade desde a infância é contada de maneira desconcertantemente livre, mirando a tensão do íntimo com o público. Agora volta-se para o outro fenômeno da psique, de origem biológica, química e, literalmente, elétrica; para as visões que nascem de dentro, que podem suscitar prazer, medo, sensações corpóreas reais. Sonhos se propõe justamente a fazer esse mergulho na vida onírica, nessa paisagem interior do cineasta, desde suas lembranças mais antigas de sonhos, em uma espécie de autoanálise que vai traçando conexões e observações. Principalmente, busca recriar estes lugares que habitou em sua mente ao longo da vida. A fragilidade do tecido onírico ecoa na opção por filmar em película. E a experiência particular fica sendo intercalada por definições dadas ao sonho pela ciência, por outras culturas e comentadores diversos. Tanto o jogo feito entre a língua original, escrita na cartela, e a tradução do narrador, quanto o tempo entrelaçado com que os sonhos diferentes vêm e vão no correr do filme, aludem a separação ilusória, à existência paralela dos dois estados de consciência, da vigília e o do sonho, que convivem sempre.