No terceiro capítulo do livro de David M. Halperin “How to be Gay“, o autor e teórico explora de que forma homens gays usaram artefatos culturais para o uso próprio, bem como subverteram expectativas e convenções de como se deve reagir a tais objetos. Ele analisa a reação de Esther Newton (em seu trabalho etnográfico “Mother Camp” de 1972) ao observar drag queens e transformistas rirem de situações que Newton considerava como horripilantes ou trágicas, além de citar Oscar Wilde e a forma como “O Que Terá Acontecido a Baby Jane” de Robert Aldrich foi reapropriada por audiências de homens gays, muitos que não viam as cenas de terror como algo perturbador, mas sim como algo cômico. A partir desses e outros exemplos, o autor então identifica uma tendência da cultura gay masculina: a de rir de situações que para outros são horríveis, subverter convenções e normas sociais heteronormativas no que se refere, entre outras coisas, a como se comportar e agir.
Pode-se encontrar essa tradição nas produções da Surto & Deslumbramento, onde o deboche se torna um elemento essencial em boa parte das obras, além de um interesse em se conectar com artistas e formas queers do passado, como é o caso de “Mama” (2012) de André Antônio. No curta, dois amigos discutem aspectos positivos sobre a música Mama de Valesca Popozuda e Mr. Catra, uma prática não tão distante do que cineastas e artistas como Andy Warhol e Jack Smith faziam nos anos 1960: apreciar e celebrar objetos culturais desprezados ou subestimados pela cultura do “bom gosto”.
A figura feminina, mais especificamente da diva, também aparece em “Estudo em Vermelho” (2013) de Chico Lacerda e “Primavera” (2017) de Fábio Ramalho, através de Kate Bush e María Félix, respectivamente. Do art rock aos melodramas mexicanos com suas protagonistas trágicas e elegantes, a exaltação e emulação da diva, cuja a adoração por esse tipo de figura é ainda hoje algo muito comum no que pode-se chamar de uma cultura gay por elas conseguirem capturar, geralmente sem tentar, o sentimento de “ser gay” através de suas músicas e performances. Há nessa adoração também um certo escudo contra a violência do mundo exterior, de se utilizar dessas divas como uma forma de se proteger das expectativas e demandas de uma sociedade que espera que todos homens ajam de forma viril e tipicamente masculina.
Venerar e se enxergar nessas figuras femininas nesse caso não se trataria em uma simples adoração cega a celebridades, mas se torna uma estratégia de sobrevivência para manter o lado queer e afeminado vivo, apesar de toda a repressão. A homenagem a essas divas nos curtas é feita de forma irônica e afetuosa, com uma afetação relativamente típica desse tipo de personificação, onde o que importa é mais o simples ato de celebrar e emular essas figuras, sem entregar necessariamente uma performance completamente fiel, o suposto “erro” e pastiche então se tornam alguns dos meios pelo quais essa homenagem é expressada.
O ar de deboche e frivolidade muda em “Casa Forte” (2014) de Rodrigo Almeida, onde nomes de prédios e desejos sexuais escondem dolorosas desigualdades de classe e de raça. O tom informal da conversa aqui carrega um ar mais melancólico, diferentemente do curta de André Antônio. O que é possível observar nesses curtas (e também em outros trabalhos) da Surto & Deslumbramento é uma vontade não só de simplesmente fazer um cinema gay com personagens e histórias gays, mas em fazer um cinema queer onde isso se expressa não somente na história, como também na própria forma dos filmes. Um cinema queer que não tem interesse em agradar ou ensinar algo para um público cis e/ou heterossexual, nem em esconder vivências e costumes que cada vez mais são descartados em filmes gays em prol de assim se tornarem mais “acessíveis” e higienizados. Um cinema que dialoga com outros cinemas queers de diferentes épocas e localidades, onde o deboche é utilizado como ferramenta política para desmantelar a seriedade de uma sociedade heteronormativa, desnaturalizar o suposto “natural”.