Programa 6 - A festa da desordem e os desejos selvagens

por Rafael Texeira

Em um castelo mergulhado na escuridão noturna, mora uma bela mulher vestida de branco, com a qual uma criança perdida troca breves palavras antes de adormecer. Em “Lábios de Sangue” (1975), obra-prima do cineasta francês Jean Rollin, um homem tenta dar sentido a essa imagem de infância, cujas ruínas, reais ou imaginadas, ele recorda por acaso durante um coquetel. O sexto programa da Mostra Que Desejo, “A Festa da Desordem e os Desejos Selvagens”, estabelece um diálogo com o cinema fantástico e evoca de certa maneira o clássico que descrevi acima. Em um curta e um média, assim como no longa de Rollin, corpos cheios de libido têm visões do passado ou do futuro, ressignificando vida e morte a partir delas.   

Tudo pode acontecer em uma noite, inclusive acordar. Em “Promessa de um Amor Selvagem” (2022), o jovem Bruno passeia por uma cidade aparentemente inabitada até que encontra uma festa no apartamento de um prédio qualquer. Como nas madrugadas melancólicas dos filmes de Rollin, uma pura atmosfera de sonho se tece a partir do concreto urbano, e é da brutalidade do espaço ao redor que emerge a liberdade narrativa. Para surpresa de ambos, espectador e protagonista, o diretor Davi Mello conduz essa libertação aos poucos, indo de músicas traduzidas em cores à radicalidade da estrutura. Enquanto Bruno tenta adivinhar em meio à paquera o futuro do outro pelas linhas das mãos, a verdade é que será ele próprio, com seu corpo ardente, o responsável por redimir o passado. A noite guarda em si a promessa da aurora, respondendo enfim ao apelo das vozes antes caladas, tal qual escreveu Walter Benjamin.

A certa altura, Laís, a aniversariante, decide cantar para os convidados: “Vampiros, espectros, pairando no ar, em sonhos vou ver”. Com outra canção, Elena, integrante do trio protagonista de “Panteras” (2022), parece responder: “Mi sangre es el camino, llévame donde quiero estar”. É preciso tomar cuidado, pois aqui o sangue é em igual medida construtor de laços e provocador de ruínas, com personagens a ponto de se desfazerem de tanto desejo. Foi em uma festa que Elena e Verônica, amigas e até então namoradas, conheceram Renan, um rapaz amaldiçoado a viver os sonhos e pesadelos das pessoas que dormem ao seu lado. Nessa noite, Verônica remontou as peças do passado, e Elena pintou um quadro do futuro. Se o luar sobre a cidade remete diretamente a Rollin, o cineasta Breno Baptista também faz um filme de vampiros permeado por sexo e impregnado de um caráter onírico. 

Ao fim, mais do que consumirem uns aos outros, os corpos se juntam para comemorar a sua libertação. Quando Vladimir Lênin disse que “as revoluções são festas dos oprimidos e dos explorados”, não imaginava que seria tomado tão literalmente como neste programa.

A tela pulsando em pontos brancos, como poeira estelar ou átomos em convulsão, abre o curta Blæd, de Bernardo Wendrownik. Organizam-se na constelação de um rosto, que emerge do ruído – a face remota de uma mulher, logo interrompida por outra: novamente, um closeup hollywoodiano antigo – Gloria Jean, olhando para baixo, sem movimento. Mas uma estranha moldura, típica dos créditos iniciais, está recolocada exatamente sobre seu rosto, fechando-o, ainda que ele extravase um pouco o retângulo. São pedaços do filme Copacabana, de 1947, que passam a vir e revezar, então, com uma imagem obscura e granulada. Num breu feito de formas vagas, se distingue apenas um neon escrito “rio”, e a portaria de um prédio. Um hotel, um prédio, uma entrada qualquer na Copacabana real, se fazem portal para velhas imagens norteamericanas, para Carmen Miranda. O close-up em direção às mulheres, como busca por um signo totalizante do desejo, como momento onde se cristalizou todo um imaginário e um ideal de feminilidade, oferece no curta dois olhares enigmáticos. O avesso traz um rastro vermelho como conclusão. 

Nos filmes seguintes, Looping, de Maick Hannder, e Sonhos, de Chico Lacerda, o silêncio cede à uma voz, que nos guia por um mundo pessoal, pela subjetividade de um indivíduo. Looping trata do encontro amoroso entre dois jovens, visto através de fotografias em um movimento limitado e circular, que mudam num ritmo fixo. Registram todas as feições e olhares do desconhecido por quem o narrador se apaixona, perseguem ele até o desnudamento, tentando possuir cada instante. A voz, sem corpo em cena, guia as imagens misturando-as com suas percepções de detalhes únicos, como uma confissão em um diário ou um romance. A intimidade entre homens, que precisa se fazer secreta socialmente, em Looping se deseja totalmente exposta e aberta ao mundo, tal como viu e sentiu alguém em um momento de paixão, dor e obsessão. Tudo que se restringe, e aquilo que se espera, da sexualidade masculina encontra neste relato mineiro um potente sentido de desvelamento, sobretudo do corpo em si. Mas é como se, afinal, pela restrição e pela repetição no beco sem saída da memória, o movimento não se completasse. Elementos como o parque de diversões, a fuga na estrada por hotéis baratos, parecem as marcas de uma atmosfera ficcional e idealizada da descoberta do amor jovem. 

O desejo é o motor do sonho, e o sonho, por sua vez, é como uma bússola do desejo. O fundo onírico mais explícito de Sonhos, fechando a sessão, acaba ressaltando uma verve que atravessa de certo modo os três curtas. O tom ensaístico do filme dá continuidade ao que Chico Lacerda já vinha fazendo em trabalhos como Virgindade (2015), em que sua experiência da sexualidade desde a infância é contada de maneira desconcertantemente livre, mirando a tensão do íntimo com o público. Agora volta-se para o outro fenômeno da psique, de origem biológica, química e, literalmente, elétrica; para as visões que nascem de dentro, que podem suscitar prazer, medo, sensações corpóreas reais. Sonhos se propõe justamente a fazer esse mergulho na vida onírica, nessa paisagem interior do cineasta, desde suas lembranças mais antigas de sonhos, em uma espécie de autoanálise que vai traçando conexões e observações. Principalmente, busca recriar estes lugares que habitou em sua mente ao longo da vida. A fragilidade do tecido onírico ecoa na opção por filmar em película. E a experiência particular fica sendo intercalada por definições dadas ao sonho pela ciência, por outras culturas e comentadores diversos. Tanto o jogo feito entre a língua original, escrita na cartela, e a tradução do narrador, quanto o tempo entrelaçado com que os sonhos diferentes vêm e vão no correr do filme, aludem a separação ilusória, à existência paralela dos dois estados de consciência, da vigília e o do sonho, que convivem sempre.