Zonas de exclusão, zonas de criação
Mirar no que não existe e inventar

Uma mão segura uma claquete no centro do enquadramento, vemos apenas um pouco do braço, do tórax e do quadril desse alguém. Do lado direito da tela, vemos três homens de camisa regata branca e calça jeans. Sem camisa, um quarto homem está ajoelhado em frente aos outros. Não vemos o rosto de nenhum deles. Sem batê-la, quem segura a claquete se retira do quadro. Os homens, que aparentemente estavam esperando o momento certo para a ação, começam então a se movimentar. Assim inicia Macho Carne, que abre o programa 3 da Mostra Que Desejo (2022), intitulado Masculinidades minoritárias, zonas de experimentação. O programa composto pelos curtas Macho Carne (George Pedrosa, 2021), Filhos da Noite (Henrique Arruda 2022) e Perto de Você (Cassio Kelm, 2021), confronta a ideia de masculinidade. Ainda que em uma primeira mirada o tema central de nem todos seja a masculinidade em si, todos passam por ela em algum nível. E juntos a confrontam, pois trazem para as narrativas outras construções de masculinidades, que ainda estão sendo exploradas e experimentadas, seja com um gay idoso performando numa boate como drag ou com a transição de um homem trans. Os curtas produzem e registram imagens que confrontam a masculinidade “viril” e “universal” que o próprio cinema ajudou a consolidar.   A sequência dos curtas produz uma gradação que inicia-se num universo de fantasia, delírio e sexo e culmina num cotidiano realista e cru.      Passeamos pela fantasia sexual sem limites, pelas memórias e percepções de gays com mais de 50 anos até chegar na casa de um pai e um filho em processo de transição de gênero que estão isolados de um mundo que ameaça matá-los por um vírus letal.

Em Macho Carne, as fantasias sexuais se mesclam com a apresentação de um universo que foge das convenções do que entendemos como real. Por muitos momentos não sabemos se o que estamos vendo está acontecendo somente na mente dos personagens ou se eles estão realmente fazendo todas as experimentações sadomasoquistas mostradas na tela, seja pelo absurdo de algumas imagens que parecem fantasiosas (uma língua sendo torcida por um cordão até sangrar; o líquido branco que lembra esperma sendo derramado na cabeça de um homem) ou pela intercalação de imagens que nos trazem a ideia de sonho, como na segunda cena na qual um homem deitado de olhos fechados e cueca branca transparente alisa seu corpo passando por expressões de angústia e prazer enquanto a cena é intercalada com a de uma pessoa de costas e de quatro (provavelmente a figura monstruosa que veremos frontalmente mais a frente).         

Com alguns ângulos que lembram os da pornografia (a proximidade da câmera com a genitália do ator que aparece de cueca branca, por exemplo), o filme exerce um certo controle sobre o sexo, interrompendo sempre que estamos muito próximos dele e as cenas estão gerando excitação: após alisar os três homens em pé, o homem ajoelhado da primeira cena é segurado e obrigado a beber um líquido desconhecido, colocado em sua boca por uma mão com luva preta e cheia de alfinetes. A mão adentra sua garganta, faz o líquido escorrer e o homem regurgitar. Em outro momento a cena passa de um homem imaginando mãos enluvadas alisando seu peitoral para uma figura que parece estar entre a humanidade e a monstruosidade, uma vez que tem corpo de gente mas usa uma máscara cobrindo totalmente seu rosto e que parece ser feita  de carne viva (o sangue ainda escorre e pinga), além de tampar os olhos e trazer abertura apenas para a boca, o que descaracteriza totalmente a possibilidade de um rosto humano.  Assim temos a diluição dos limites entre o que nos causa prazer e o que nos gera repulsa (pelo menos em um primeiro momento). O prazer e a dor, a beleza e a monstruosidade habitam a mesma tela e parecem nos dizer que estão assustadoramente próximos, nos fazendo questionar se as cenas descritas anteriormente são interrupções do sexo ou outras facetas dele…

Também lançando mão de sensações e imagens contrastantes, o documentário Filhos da noite de Henrique Arruda traz depoimentos de homens gays de gerações anteriores, com faixa etária entre 50 e 70 anos... A apresentação da individualidade dos participantes se dá não apenas através do que falam, mas pela forma que as imagens deles e sobre eles são mostradas: há um participante que aparece cantando em meio a árvores ao ar livre, um performa como drag dentro de uma boate com luzes de festa (a cor azul toma conta da tela), um casal aparece pelado em sua casa através de fotos analógicas, outro em preto e branco se vestindo e se maquiando em um camarim… Henrique se preocupa em registrar algo de particular em cada um e criar uma estética própria para isso, demarcando a multiplicidade de discursos e registros, o que transparece através da materialidade das imagens que nos são apresentadas. Além de aparecer também pelas palavras: enquanto um diz que nessa idade não há mais amor, mas muita solidão (“Eu acho muito difícil você ser amado na velhice”), outros dois celebram o casamento de anos. A unidade se dá apenas no fato de todos os participantes serem homens gays mais velhos, todo o resto é múltiplo e diverso, inclusive a maneira de cada um viver e expressar sua masculinidade. Ainda bem.

 O documentário Perto de você  traz um um caráter mais caseiro e voltado para a simplicidade do cotidiano, uma vez que por ser realizado durante o isolamento social, acontece quase que inteiramente dentro de um apartamento e mostra momentos muito característicos de serem feitos em casa, como faxinar, lavar louça e trocar de roupa, além de não haver espaço para fabulação, diferente de Filhos da noite. Logo percebemos que a qualidade da imagem se assemelha muito a gravações feitas por câmeras “para registros pessoais” (é gravado com uma câmera de mão). Nele acompanhamos recortes do dia a dia de um filho, Cássio Kelm, que durante o isolamento social do covid-19 se muda para morar com o pai, Alceu Jorge, um idoso que vivia sozinho desde o falecimento da esposa há 6 anos. As filmagens são todas feitas por Cássio, que registra momentos muito identificáveis para aqueles que respeitaram o isolamento social e permaneceram em casa durante os momentos mais críticos da pandemia: fazer curso remotamente; higienizar as compras antes de guarda-las, assim como trocar a “roupa da rua” por medo de contaminação; tomar banho de sol; aumento do sofrimento psíquico. O filho é um homem trans que está decidindo se conta para o pai sobre sua transição. Por diversos momentos escutamos o pai se referir ao filho pelo seu deadname. Aqui acompanhamos duas masculinidades que se convergem, se acolhem e se desencontram. Se por um lado temos um filho passando por uma transição e com uma masculinidade ganhando espaço, por outro temos um homem de outra geração, já com a idade avançada e cuja masculinidade provavelmente impeça que a do seu filho aconteça em plenitude. Apesar da contradição gerada por isso, em nenhum momento vemos o pai como transfóbico e/ou incompreensível, mesmo com a falta de espaço para diálogo sobre a transição do filho. Cássio parece se preocupar que vejamos o pai pela ótica de cuidado que ele mesmo o vê, uma vez que decidiu se mudar para não o deixar sozinho. Então mesmo quando o pai se refere ao filho pelo nome errado, são momentos de intimidade (como quando ele manda um áudio confirmando que um presente é “para ela”), além das filmagens que mostram os dois em relação servirem para criarmos empatia por ambos, pois durante a meia hora em que os acompanhamos nos sentimos parte dessa intimidade. Como arremate disso, ao final o pai cantarola o ritmo de uma música chamada “Close to you” enquanto Cássio o filma. O pai sai da tela e Cássio dá continuidade a cantoria da música, mas agora com letra: “Assim como eu, eles também querem estar perto de você.”      

Dentro do Programa 3 as masculinidades são campos de constante experimentação e reinvenção, pois ser LGBTQIA+ parece te empurrar para isso, uma vez que perante a norma masculina e heterossexual ser gay e/ou trans automaticamente te impede de pertencer/encaixar na masculinidade compulsória. Exemplo desse “empurrão” é o abismo entre Alceu Jorge e os participantes de Filhos da Noite, que apesar de terem como semelhança a idade, trazem identidades e expressões de gênero muito distintas. O sequenciamento dos dois documentários explicitam o quanto as expressões de masculinidades LGBTQIA+ são criações em constante movimento.  O desejo de mirar no que ainda não existe e inventá-lo é um fato. Seja pelos direitos recém conquistados ou pela constante necessidade de readaptação a um mundo que não foi feito para nós, além da construção de outras lógicas que permitam e abarquem nossas vivências. Vivências essas que se dão em locais tão múltiplos quanto elas próprias: na imaginação e na fantasia; em boates, palcos e camarins e até mesmo trancafiadas em casa, acompanhadas dos familiares e das solidões compartilhadas. Não à toa os três filmes assumem um lugar metalinguístico e de espaços de criação: Macho Carne começa com uma claquete marcando o início da filmagem, além de terminar com um ator recebendo indicações de alguém, Filhos da noite além de ser um documentário, traz no momento da performance de Salário Mínimo uma tomada que nos mostra a diretora de fotografia filmando o momento enquanto o diretor gesticula para a drag e Perto de você parece estar sendo criado enquanto o assistimos, seja pela evidente manipulação da câmera por Cássio ou por ele falar sobre: “Você acha chato que eu fico te filmando?”. Os filmes explicitam como a arte funciona como um caminho para a invenção dessas outras masculinidades, seja como registro delas ou como a própria criação.