PROGRAMA 02 - A CASA É SUA

por Gabriela Pingarilho

“Fica à vontade, a casa é sua”, uma forma que a língua portuguesa dos trópicos formulou para expressar um modo de solidariedade em exercício cotidiano. Há quem diga que o Brasil deva dedicar seus esforços para se construir não em direção à falácia do progresso, mas sim enquanto uma grande potência solidária – e é nesse gesto de abrir as portas, nesse passeio para apresentar os cômodos da casa e no convite para se sentar, que a força dos encontros, diários e espontâneos, se coloca como um modo de abrir caminhos possíveis para o futuro, para o dia após o outro. E no Brasil, que é dos países mais violentos contra os corpos e desejos dissonantes, é preciso que tais caminhos sejam também seguros, bem iluminados e percorridos em boa companhia. Os filmes da sessão “A casa é sua” são como amuletos, nos deixam pistas sobre qual direção seguir e, como uma pequena lembrança que se carrega no bolso, nos relembram do que é essencial.

De dentro da casa, olhando através da janela aberta, elu deslumbra a lua cheia e parece esperar por algo ainda invisível. “Na estrada sem fim há relampejos de esplendor”, de Liv Costa e Sunny Maia, é um filme sobre o lugar em que nascemos. Primeiro, sobre ir embora de onde se nasce e ter espaço fresco para se renovar, trocar de pele. Afastar-se da origem para se aproximar do que é somente seu, dessa partícula da existência carregada pelo corpo até o fim dos próprios tempos. Afastar-se das fronteiras delimitadas por Outros no instante do nascimento. Percorrer continente desconhecido. Duas pessoas numa moto em alta velocidade, avançando na escuridão de uma estrada. Vemos rastros de uma floresta. Olhos fechados, corpos juntos. Aqui, é um filme sobre ir embora do lugar onde se nasce, mas voltar de tempo em tempo; apresentar a cidade para novas pessoas; visitar a família de sangue e nutrir os vínculos com a família que se escolhe; levar o corpo mais velho para os lugares conhecidos na infância; recorrer sempre às primeiras perguntas: “como você gostaria de ser chamado?”. Portas, janelas e casas desenhadas à mão, em cores em tom de rosa e lilás. E o som das crianças gargalhando, correndo de um lado para o outro, talvez numa praça.

Os caminhos podem também ser virtuais. “Acesso”, de Julia Leite, parte da possibilidade sensorial da experiência cibernética e é um bom exemplar de um modo de fazer cinema pautado pelas condições da crise sanitária da covid-19. Seis pessoas da comunidade LGBT de São Paulo foram impossibilitadas de visitar seus lugares de afeto. Restringindo-se quase exclusivamente às imagens da tela de navegação de um computador, se apropria do novo tipo de relação simbiótica com o universo digital que veio das condições pandêmicas. Através do Google Maps, visita os locais onde esses personagens encontraram acolhimento em relação às suas sexualidades. A Igreja, o bar, o cinema de rua, o estacionamento do parque, o terraço da casa – vemos suas fachadas a partir de vistas panorâmicas captadas pelo Google Street View. Ainda que com intenções meramente pragmáticas, a gigante multinacional acaba por eternizar cenas que flagram os modos de vida desses lugares remotos. “Acesso”, através de jogo de montagem – altera as imagens, usa livre associação, acrescenta sons, direciona a visão para o céu, como quem observa as nuvens, ou simula quem caminha encarando o chão -, explorando o que há de mais cinematográfico na experiência digital. Sintetiza bem os tempos ainda muito recentes onde, impossibilitados de vivermos novas experiências, questionamos – a memória é também caminho? Debruçar-se sobre ela pode ser também uma nova experiência? A memória é necessariamente um caminhar para trás?

Os fantasmas continuam a nos circular mesmo quando não lembramos de suas existências. Enxergar através dos tempos é um sentido a ser desenvolvido para não sermos engolidos pela naturalização da paisagem. Pensando nos assombros do passado que ainda nos circulam, “Maldição Tropical”, de Luisa Marques e Darks Miranda, cria um diálogo entre dois projetos de nação brasileiros: o imaginário tropical, exportado para fora e personificado por Carmen Miranda; e o modernismo tardio, incorporado na construção do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. A figura de Carmen Miranda morta, no caixão, com seus lábios maquiados de vermelho, é a imagem-síntese de um signo levado à exaustão. A venda do exótico e do tropical pareceu nos render bons frutos, inserindo-nos na dança da política da boa vizinhança e obrigando a repetir as mesmas imagens para, quem sabe, sermos lembrados. Cores vibrantes, bananas, abacaxis e coqueiros construíram o arsenal do imaginário representado pela portuguesa que fez do Brasil sua casa e acabou por se tornar refém de sua própria personagem. A partir do uso de imagens de arquivo, o filme mostra a construção da infraestrutura do Aterro do Flamengo  junto à cenas de “Banana is My Business”, de Helena Solberg, e cria uma ficcionalização do passado e do futuro. Acrescenta elementos licércios à paisagem geometricamente construída no parque, e vemos discos-voadores rondando os céus. Comenta a ideia “progressista” de superação do passado e o esforço de manutenção da hegemonia política e social dos homens. Se hoje o espírito de Carmen nos ronda, é para anunciar nosso assombro: o temor de sermos e continuarmos precários, antigos. E é dançando entre as árvores, vestindo um pano branco e uma coroa de abacaxis, agora em decomposição, que este fantasma zomba desse medo tão infantil.

Do portão, Rose chama a equipe para entrar e pede que ninguém repare na bagunça. Desde que passou em frente àquela casa abandonada, nas proximidades de seu antigo trabalho como passeadora de Pets, ela aproveitou a porta aberta e entendeu que era era um sinal: sua missão a partir daquele momento seria cuidar da residência deixada para trás. Rose não sabe nenhuma informação sobre a antiga moradora, a não ser aquelas interpretadas a partir dos velhos objetos nas prateleiras e dentro dos armários. “Escasso”, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia, parte dessa história para construir uma fronteira fluida entre a ficção e o documental, onde um monólogo performático de Rose, interpretada pela própria Clara Anastácia, é entremeado por intervenções metalinguísticas da equipe do suposto documentário, que questionam a personagem a respeito desse curioso caso de uma mulher que se reconstrói a partir de rastros do desconhecido. A comédia dita o tom do filme, que se mistura com a expressão genuína e espontânea de uma consciência que não é montada, como acontece com grande parte da esquerda branca brasileira, mas que vem da própria experiência periférica. “Escasso” traz a questão da moradia e remete às imagens criadas por Eduardo Coutinho em “Edifício Master”, atento ao modo de enquadramento, à liberdade para deixar o entrevistado falar sem ser interrompido, assim como não cortar a filmagem quando houver silêncio. A personagem de Rose expressa o que, para ela, há de essencial na manutenção da vida: “quarto, cama boa, bom colchão”; “comer tudo, botar coisa no estômago”; “ver a porta aberta e entrar, não ficar do lado de fora exposto”. Aqui, retornamos à segurança da casa e garantimos o cuidado com os santuários, mesmo que desconhecidos.