Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol e Vênus de Nyke

por José Lucas

No programa Como Era Gostoso Teu Cheiro, dois filmes constroem retratos bastante diferentes de experiências possíveis de sexualidades marginais. 

Num primeiro olhar, os filmes Dois Garotos Que se Afastaram Demais do Sol e Vênus de Nyke não poderiam ser mais distintos. Ambos possuem propostas estéticas e abordagens que em muitos momentos são diametralmente opostas, mas que vistos juntos também operam como discursos complementares. Se um questiona como representar o desejo num cenário de profunda repressão, o outro encontra formas de enquadrar esse desejo num ambiente em que sua possibilidade se torna um vício. Em conjunto, os dois revelam uma pluralidade de olhares possíveis para a experiência queer e as diferentes formas em que o cinema pode dar forma a essas experiências. 

Em 24 de março de 1962 no Madison Square Garden, em um dos momentos mais infames do boxe profissional, Emile Griffith espancou Benny “The Kid” Paret, desferindo 29 socos no lutador, que perdeu a consciência em televisão nacional e acabou falecendo 10 dias depois. Embora ele tenha se tornado pentacampeão mundial e acumulando no processo uma pequena fortuna, o horror de ter matado um homem perseguiu Griffith por mais de quarenta anos. Mas essa derradeira luta não foi uma explosão errática de fúria, um desses gestos inexplicáveis que ocasionalmente galvanizam o boxe, mas sim o ponto final de um longo processo de ressentimentos, preconceitos e repressão que muitas vezes acabam empesteando ambientes dominados pela masculinidade. É esse acontecimento, e o processo que levou ao derradeiro gesto de violência, que o curta Dois Garotos que se afastaram demais do sol se debruça, mostrando como o caldo de masculinidade e homofobia, quando se deixam prosperar em ambientes férteis, podem gerar resultados mortais. 

Ao apostar numa narrativa que mistura os acontecimentos que levaram à luta entre os dois boxeadores com momentos dedicados a explorar a subjetividade desses indivíduos, o filme pinta o quadro de dois homens atravessados pelo racismo e homofobia dos Estados Unidos nos anos 50 e 60, nunca reduzindo o olhar para um simples julgamento de suas ações mas tentando entender as circunstâncias que os levaram a carregarem dentro de si a repressão que constantemente era direcionada a eles. Esse gesto de se deter em personagens históricos como ponto de partida para compreender questões mais amplas que atravessam a comunidade negra, aliando reconstituições históricas com fabulação, me traz à memória os filmes de Isaac Julien, que ao investigar as tensões entre a experiência queer e negra nos Estados Unidos criou obras que manipulam o próprio tecido do cinema, unindo gêneros, formatos e transitando pelo realismo documental e expressionismo romântico com naturalidade. 

Aqui, as diretoras Lucelia Sergio e Cibele Appes optam por uma visão de notável plasticidade, com uma fotografia monocromática de contrastes marcados e ângulos expressivos, que aliados a um estilo superlativo, declamatório do elenco, também empresta ao filme um caráter teatral, resquícios da gênese do projeto, inicialmente destinado a ser

uma peça baseado no texto dramatúrgico “12º Round” de Sérgio Roveri. Ao conseguirem unir a potência do texto original às capacidades cinematográficas de conjurar um universo subjetivo, as diretoras realizaram em Dois Garotos que se afastaram demais do sol uma obra que olha com inteligência não apenas para a história de dois personagens excepcionais na história das comunidades latinas e afro americanas do século passado, mas também como uma sociedade repressiva é uma força poderosa, não apenas dos corpos, mas também de desejos. 

Num outro oposto, Vênus de Nyke aposta numa estética de baixo orçamento para revelar um personagem que aos poucos vai se perdendo em meio a própria liberdade. O novo filme do diretor André Antônio, membro do coletivo Surto & Deslumbramento, reforça o trabalho do grupo como um dos mais interessantes do cinema brasileiro atual, empregando um olhar preciso para a sexualidade queer com muito humor e inteligência. 

Assim como os outros filmes do diretor, Vênus de Nyke embora abrace as possibilidades de seus imaginativos cenários, se aproxima mais um ensaio que de uma obra de ficção em seus moldes mais rígidos – a narrativa tênue aqui servindo como guia para uma investigação de caráter muito mais dialético e estético de temas como repressão, expressão sexual, desejo e fetichismo. 

O filme se estrutura em torno de uma série de consultas entre um paciente e psicóloga: ele com um fetiche por calçados que beira a obsessão e ela na posição de observadora interessada, empregando um distanciamento ora curioso ora com um tom de ironia provindo da genuína confusão e interesse diante dos comportamentos do seu paciente. Através dessa estrutura mínima, o filme tenta dar corpo a esse desejo específico – atrelado a uma peça de vestuário – através de uma colagem que embarca relatos, filmes e rituais. Todos operando como peças de um conjunto complexo, e que por isso impossível de ser transcrito e experienciado numa única linguagem, ou numa única voz. 

Assim, a polifonia se torna a única saída, e o diretor mais uma vez exerce seu olhar ao mesmo tempo cerebral e bastante direto para a sexualidade para tentar conectar esses pontos num retrato algo coeso, algo que ele já havia explorado em A Seita, seu projeto anterior onde é visível um domínio claro da história de um certo cânone gay e uma tentativa de manipulá-los e filtrá-los num prisma que ao fim é inconfundivelmente pessoal. Se lá tínhamos Andy Warhol, melodramas em Technicolor, pinturas de Fragonard; aqui temos Larry Clark, Derek Jarman, Freud. Mas se no seu longa tais referências eram pontos de partida, uma tabula rasa onde o qual ele aplicava suas próprias intervenções de cena a cena, em Vênus de Nyke elas se revelam de forma muito mais dura, automática, um jogo de montagem que constrói sentidos. 

Tais decisões muito provavelmente também foram tomadas levando em consideração as restrições que acabaram dando corpo ao projeto, realizado em meio a pandemia da COVID 19 e com recursos mínimos. Esses limites, longe de prejudicarem a visão total do filme, emprestam textura às imagens, aqui muito mais imediatas e diretas que nos outros trabalhos do diretor. Uma experiência que, embora curta, condensa em si uma riqueza discursiva sempre revigorante de ver no cinema queer, ainda mais um cinema que mergulha sem medo no erotismo, no sexo e suas infinitas representações e expressões.