Sementes daninhas
“então se liga: nós somos
seu
apocalipse
kuir, y vamo destruir
tudo que vc ama, seus ideais de
“civilização”, “cultura erudita”,
“amor pela liberdade”,
“justiça”,
isso que não passa de liberalismo,
galerismo burguês
política racializada de
encarceramento, epistemicídio
genocídio colonial: quer matar tudo
que ri, tudo que goza, tudo
que dança,
tudo que luta
quer matar a gente.
mas a gente, que nem semente daninha,
vinga, se espalha, sobre
vive!”
O poema de tatiana nascimento nos ajuda a pensar as linhas de força que movem a expansão da Mostra que Desejo. Um evento que, após duas edições em Maceió, chega ao Rio de Janeiro no desejo de se espalhar e plantar tudo aquilo que não pode ser contido: o riso, o gozo, a dança, a luta, os corpos dissidentes e tudo aquilo que se desvia da norma que contém, vigia, controla e mata. Uma mostra que surge para semear um audiovisual que coloque abaixo os tetos da imaginação contida da cisheteronormatividade e todo projeto capitalista que a abraça.
Essa é a maior edição da mostra que fazemos para sobre/viver a tudo isso. Com seis longas e mais de 40 curtas e médias em duas salas de cinema diferentes, estamos muito felizes de poder estar com esses filmes no Rio de Janeiro, cidade de contrastes e contradições, delícias e dores. Simultaneamente rodeada de belezas naturais e com pessoas cheias de carisma e energia, mas que também é marcada por limitações de quais corpos podem aproveitar esses espaços, quais são belos, e por violências que hoje a transformaram num espaço sitiado pela milícia (das armas e dos bons costumes). Entrar em contato com cineastas locais através de seus filmes nos ajuda a repensar esses territórios, e queremos aqui agradecer nesta edição à presença de Érica Sarmet, que já esteve em edições anteriores da Mostra que Desejo como diretore de um dos filmes exibidos, e agora também participa como curadore que nos ajuda a montar uma programação que tensione esse espaço do Rio de Janeiro e faça ruir os imaginários de Brasil produzidos a partir das Helenas do Leblon.
Porque afinal, o que queremos com esses filmes, que aqui se encontram como corpos numa pista de dança, é festejar o fracasso. O fracasso das músicas de “mau gosto”, das bebidas baratas e doces, das maquiagens excessivas, borradas no suor da festa e desse aquecimento global dos inferno. Mas, mais do que isso, queremos celebrar o “sujo”, os desvios do padrão, as imagens fora de foco, os bugs, os glitchs, as personagens moralmente duvidosas e, sobretudo, o deboche como a arma mais eficaz para “espetar e fazer furos na positividade tóxica” (HALBERSTAM, 2020) do neoliberalismo.
A Mostra que Desejo, ainda que carregue no título a primeira pessoa do singular, dança nos espectros de uma sujeita coletiva. E se move pela ideia de que os filmes que nós desejamos, nós os corpos que transbordam a “norma”, precisam também descumprir em vários momentos com as normas de um cinema que parece ser mais “Cinema” porque não é… marcado. Deixemos então as narrativas higienizadas do LGBT para as grandes corporações do audiovisual, para que aqui possamos resgatar a anarquia infantil que nos foi podada, e romper com alguns pactos do bom comportamento para exibir nossas “marcas” sem precisar reverenciar qualquer ideia de “universal”. O apocalipse kuír chegou e o mundo como nós o conhecemos nunca mais será o mesmo. Um brinde.
Carol Almeida
Éri Sarmet
Felipe André Silva
Leonardo Amorim