A bomba-relógio chamada corpo denota diligentemente a contagem regressiva rumo a seu extermínio ao soar do estalar das juntas, dos nervos que se apagam, dos fluidos que se ressecam e da carne que se afrouxa. O corpo é corroído, habitado e evacuado por fauna e flora; a pele é dilacerada pela faca do tempo; a seca se alastra e, onde outrora existiram lábios molhados pela lânguida saliva, agora há vento que varre a poeira. Teme-se, no entanto, não a imposição barroca, mas aquela boca molhada, que anseia compartilhar sua viscosidade com outro orifício que seja, em outro corpo qualquer, em busca de uma vida eterna composta de pequenas mortes.
A culpa — que seja católica, política ou higiênica — não hesita em inundar as margens do desejo, e, em seu ímpeto de supressão, o delimita, dando forma ao que antes era instinto abstrato. O desejo queer recusa o tsunami moralista e amplifica seus sentidos — mais odoroso, mais pegajoso, mais primal, mais perigoso, mais lúdico, mais cru —, reivindicando cada milímetro de sua terra prometida, aquela bomba relógio que agora se desfaz em prazer.
A imagem dessa mistura fisiológica, despida de polimento, permeia cada filme da sessão “No Cru do Nu”, apanhado de trabalhos realizados entre 2017 e 2020, conectados pela textura e som de tudo que escorre para fora do corpo e de tudo que por dentro dele corre. São filmes de cuspe, que recobrem o universo normativo com tinta, sangue e látex.
Seu léxico pouco se preocupa com imposições métricas, tampouco gasta energia com a análise fria. Sob conflitos éticos e anseios reprimidos, há o humor despojado de uma boa e velha história de vampirismo lésbico, ou as imagens deliciosamente cartunescas de Tom of Finland, reapropriadas pelo cinema como que em uma VHS da década de 1970 escondida sob um saco plástico preto. Ecos de Derek Jarman, Bruce LaBruce, Georges Bataille e Jean Garrett, entre outros, conectam esses curtas-metragens a um extenso panorama da história do homoerotismo escaldante.
Aqui, toda figura central encontrada se move, se comunica, se difunde, se machuca e se cura em sexo, que existe em gotas de sangue no chão sujo, em um ovo que se quebra, na dança desengonçada e destemida que só se dança na fase púbere, nos computadores e no techno (literalmente) contagiante.
Essas metonímias da identidade queer desafiam paradigmas da sociabilidade que apenas a ficção permite aproveitamento, e daí floresce a fantasia. O queer, nu e cru, pode reformular todo e qualquer espaço, mas tem os pés na base do cinema de gênero: o delírio de uma nova existência, ou do retorno de uma longínqua forma de viver.
Despem-se os indivíduos, sim, mas desintegra-se qualquer que seja o pilar da normalidade, e, ao encarar aquelas figuras nuas em tela, o espectador é surpreso pelos estampidos que ecoam sob sua própria pele. Incertos, porém indubitáveis, evidência de que há mais nudez do que o olho atesta, mas não mais do que o cinema revela.
Para Éri Sarmet, é o anal que retoma seu espaço nos anais; Lucas Fratini prefere imaginar uma sedutora vampira nos braços de Clarice Lispector; Rafaela Camelo constrói uma igreja para MC Tha, Daniel Nolasco faz luxúria do lúgrube e Trojany faz do ar, corpo. No cru do nu, livrar-se das roupas é sempre só o começo.